Imagine que todos os dias de manhã você leve seu lixo do dia anterior para a calçada na frente de casa e deixe lá, mas o caminhão do lixo nunca passa para recolher. Vai chegar um dia que você não vai nem conseguir sair de casa, não é? Pois é mais ou menos isso que estamos fazendo com nosso lixo espacial na órbita da Terra. Desde os anos 50 estamos depositando as sobras de nossas conquistas espaciais nas portas de nossa casa cósmica, e como nunca nos preocuparmos em recolher esse lixo, ele está acumulando e já começa a causar problemas.
Na última quarta-feira, os céus do Brasil ofereceram um espetáculo memorável. Uma “bola de fogo” cruzou a escuridão, deixando para trás um rastro de luz e espanto, celulares apontados e milhares de olhos voltados para cima. O inesperado fenômeno foi causado pela reentrada do segundo estágio de um foguete Falcon 9, da SpaceX — um cilindro metálico que, depois de 11 anos em órbita da Terra, resolveu dar um último show pirotécnico sobre nossas cabeças.
Mas o espetáculo que surpreendeu a todos aqui no Brasil deixou a desejar no tão aguardado retorno do módulo de descida da Kosmos 482, que no último sábado reentrou na atmosfera sobre o Oceano Índico, ofuscado pela luz do dia e encoberto por uma cortina de nuvens. A sonda construída para ir ao inferno de Vênus descansa em paz no fundo do mar.
Em apenas cinco dias, duas reentradas que chamaram muito a atenção (fora os Starlinks que caem quase todo dia). É como se alguns daqueles sacos de lixo esquecidos na frente de casa repentinamente voltassem voando pela janela da sua sala.
E aqui está o fato preocupante: essa não é só uma impressão. As reentradas realmente estão ficando mais frequentes e os números mostram que a situação só vai piorar. Vivemos cercados por um verdadeiro cemitério orbital, onde flutuam desde satélites aposentados até objetos bizarros como o Tesla Roadster de Elon Musk. A ESA estima que existam mais de 45 mil objetos maiores que 10 cm sendo rastreados, mas o número real é assustador: milhões de fragmentos — alguns do tamanho de um grão de arroz — viajando a mais de 27 mil km/h. Nessa velocidade, até um parafuso solto pode perfurar um satélite como uma bala atravessa papel.

E, por mais que as reentradas ocorram quase todos os dias, essa quantidade cresce assustadoramente a cada ano. Um caos orbital silencioso e invisível, mas cada vez mais presente.
Vivemos a era do boom espacial. Apenas em 2024, foram 263 tentativas de lançamentos orbitais, sendo 258 bem sucedidas — um recorde que vem sendo quebrado ano a ano desde 2021. O número de satélites em operação dobrou em três anos, puxado pelas chamadas mega-constelações, como a Starlink da SpaceX.
Com isso, a conta é simples: quanto mais lançamentos, mais lixo, mais peças soltas, mais colisões e mais reentradas. Em 2024 foram mais de 1500 reentradas de lixo espacial, sendo 572 de objetos com mais de 100 kg. Aproximadamente 90% de todas as reentradas são completamente descontroladas, ou seja, podem cair em qualquer lugar da Terra. O calor da reentrada desintegra a maior parte dos artefatos, mas os materiais mais resistentes, como motores e tanques, podem provocar danos em solo, atingindo casas, carros e até pessoas.

Quem não lembra da tensão global causada pela reentrada do foguete chinês Longa Marcha 5B em 2021? Sem controle e com partes que poderiam sobreviver à queda, ele gerou manchetes alarmantes e uma pitada de paranoia. Afinal, o céu está literalmente cheio e cada lançamento é como uma nova rodada dessa roleta russa orbital.
Algumas reentradas ficaram marcadas na história, seja pelo perigo, seja pelo simbolismo. Como o caso do Kosmos 954, que caiu no Canadá em 1978 com um reator nuclear a bordo, espalhando material radioativo e provocando uma operação de limpeza digna de filme de espionagem da Guerra Fria.

Ou a épica reentrada da estação Skylab, da NASA, em 1979. Partes da estação espacial caíram no interior da Austrália Ocidental, causando mais curiosidade do que danos — mas com direito a multa simbólica de lixo espacial enviada à NASA por uma cidade local.
Em 2022, um Falcon 9 da SpaceX foi registrado por Câmeras da BRAMON, a Rede Brasileira de Monitoramento de Meteoros, enquanto atravessava nossa atmosfera espalhando seus detritos no Estado do Paraná. E agora, um outro Falcon 9 rasgando os céus do país, sendo observado e registrado por milhares de brasileiros.

Felizmente até agora, os danos causados por esses detritos espaciais são apenas materiais, mas se eles continuarem a cair descontroladamente, uma hora vão acabar atingindo alguém. E talvez num futuro não tão distante, mortes causadas por lixos espaciais se tornem uma realidade assustadora.
Até existe uma crescente consciência sobre o problema. Agências espaciais e empresas privadas têm adotado medidas para reduzir os riscos das reentradas e conter o avanço desse cinturão de entulho invisível.
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Entre elas estão as regras internacionais que obrigam satélites a serem retirados de órbita no fim da missão. Muitos foguetes agora incluem sistemas de autodestruição ou direcionamento para zonas seguras no oceano. Só que nada disso tem se refletido em números e as reentradas descontroladas vem aumentando significativamente nos últimos anos.
Há também projetos futuristas (e um tanto cinematográficos) de “limpeza orbital”: satélites com redes, braços robóticos, lasers de desvio e até lixeiras espaciais controladas por IA. Entretanto, até hoje nada foi posto em prática e, recentemente, o governo dos Estados Unidos anunciou que vai interromper os investimentos em pesquisas para a redução do lixo espacial.

O espaço, que sempre simbolizou o futuro, começa a espelhar o passado da humanidade: cheio de resíduos, vestígios de glórias antigas, tecnologias esquecidas. Nossos satélites desativados e peças soltas orbitam o planeta como fantasmas tecnológicos, vestígios de uma civilização que conquistou o espaço, realiza feitos notáveis, mas nem sempre cuida do que deixa para trás.
Ainda assim, há esperança. Com o avanço do monitoramento, como o trabalho voluntário feito pela BRAMON, e a pressão por regulamentações mais severas, podemos sonhar com um futuro onde o espaço não seja só um depósito de entulho em alta velocidade, mas uma extensão limpa e segura da nossa presença.
Porque, no fim, se quisermos continuar mirando as estrelas, precisamos antes limpar o caminho.
O post O lixo invisível que ameaça o futuro da humanidade no espaço apareceu primeiro em Olhar Digital.