A dinâmica das criptomoedas e os desafios da perícia financeira criminal

A ascensão das criptomoedas como ativos digitais descentralizados representa um dos fenômenos mais disruptivos do sistema financeiro contemporâneo.

Criadas com o propósito de conferir maior autonomia aos usuários e reduzir a dependência de instituições financeiras tradicionais, moedas digitais como Bitcoin, Ethereum e tantas outras reconfiguraram a forma como se transaciona valor no ambiente digital.

No entanto, o mesmo grau de descentralização e pseudoanonimato — muitas vezes confundido com anonimato absoluto — que garante liberdade e segurança para usuários legítimos também tem servido como terreno fértil para práticas ilícitas, especialmente no que tange à lavagem de dinheiro, evasão de divisas e financiamento ao terrorismo.

Com a crescente sofisticação dos mecanismos de movimentação e armazenamento desses ativos, os instrumentos clássicos de rastreamento financeiro, como o follow the money, enfrentam obstáculos técnicos e jurídicos inéditos.

De acordo com o Crypto Money Laundering Report 2024, da empresa Chainalysis, aproximadamente US$ 22,2 bilhões em criptoativos foram movimentados por endereços vinculados a atividades ilícitas ao longo de 2023.

Um dado relevante apontado no relatório é que, dos US$ 24,2 bilhões recebidos por endereços ilícitos nesse mesmo período, cerca de 61,5% estavam relacionados a entidades ou jurisdições sujeitas a sanções internacionais.

Esses números ilustram a escala e a complexidade do desafio enfrentado pelas autoridades de persecução penal na identificação e recuperação de ativos digitais provenientes de crimes.

Antes de mergulharmos nos dilemas investigativos, é necessário compreender os principais conceitos e estruturas que sustentam o universo cripto.

Juridicamente, o ordenamento brasileiro não reconhece o Bitcoin, o Ethereum ou quaisquer ativos digitais similares como moeda em sentido estrito.

De acordo com a Lei nº 14.478/2022, que institui o marco legal das criptomoedas no Brasil, tais ativos são classificados como criptoativos, justamente porque não são emitidos por autoridade monetária soberana.

Em outras palavras, como não possuem curso legal e tampouco são garantidos por um Estado nacional, esses instrumentos não se enquadram na definição jurídica de “moeda” e, portanto, não gozam da proteção normativa conferida ao real ou a outras moedas fiduciárias (moedas fiat). Essa distinção não é meramente terminológica: ela afeta diretamente o tratamento regulatório, tributário e penal desses ativos, além de impor limites e lacunas às ações de supervisão e controle do Estado.

O ponto de partida para se entender a lógica das criptomoedas está no princípio do peer-to-peer (P2P), que remete à comunicação direta entre usuários, sem a intermediação de instituições centrais como bancos ou corretoras.

Em uma rede P2P, cada participante pode criar e enviar transações, enquanto os nós da rede (nodes) são responsáveis por validá-las. Essa arquitetura distribuída elimina a figura do intermediário confiável, sendo uma das principais inovações trazidas pelo Bitcoin e por outras criptomoedas.

A infraestrutura técnica que viabiliza esse sistema é a blockchain, ou cadeia de blocos — um livro-razão digital público, imutável e compartilhado. Todas as transações são registradas em blocos criptograficamente encadeados e validados por nodes, que operam em um modelo de consenso distribuído.

Dependendo do protocolo da rede, os mecanismos de consenso podem variar entre Proof of Work, Proof of Stake ou outros modelos, mas todos têm como objetivo garantir a integridade e a segurança do sistema, evitando fraudes como o gasto duplo (double spending).

No campo prático das transações, é importante distinguir entre hot wallets e cold wallets. As hot wallets são conectadas à internet e, por isso, mais acessíveis para operações rápidas, mas também mais vulneráveis a ataques cibernéticos.

Já as cold wallets permanecem offline, muitas vezes armazenadas em dispositivos físicos ou mesmo em papel, sendo preferidas por quem busca segurança de longo prazo ou deseja dificultar o rastreamento de ativos por autoridades investigativas.

Outro conceito fundamental é o das moedas fiat, termo que designa as moedas fiduciárias emitidas por governos, como o real, o dólar ou o euro. A principal diferença entre moedas fiat e criptomoedas está na ausência de lastro estatal e na alta volatilidade dos ativos digitais, além de uma distinção profunda nos mecanismos de controle, custódia e supervisão.

Apesar de juridicamente as carteiras digitais de criptomoedas serem anônimas, do ponto de vista técnico, é essencial ressaltar que o anonimato nas transações cripto é apenas relativo.

O que existe, na prática, é o pseudoanonimato: embora todas as transações sejam públicas e visíveis na blockchain, os endereços de carteira não estão necessariamente vinculados a identidades verificadas.

Essa característica dificulta, mas não impede, a identificação de indivíduos, especialmente com o uso de técnicas avançadas de análise forense de blockchain, cruzamento de dados, clustering de endereços e análise de padrões comportamentais.

O rastreamento de criptoativos baseia-se na análise dos registros públicos da blockchain, que funciona como um livro-razão digital contendo o histórico completo de todas as transações realizadas em determinada rede.

A partir da identificação de um endereço suspeito, os investigadores utilizam ferramentas de análise forense de blockchain, como as oferecidas por empresas especializadas, para mapear fluxos de transações, identificar conexões entre endereços e, por meio de técnicas como clustering, análise de heurísticas de comportamento e vinculação a VASPs que realizam KYC, buscar a atribuição de identidade aos titulares das carteiras. Esses procedimentos, muitas vezes complementados com informações obtidas por intimações judiciais a exchanges, permitem reconstruir cadeias financeiras complexas e seguir o rastro dos ativos até o seu destino final.

Novas tecnologias vêm ampliando significativamente as dificuldades investigativas no rastreamento de criptoativos. O uso de mixers, moedas com foco em privacidade — como o Monero — e cross-chain bridges, que permitem a movimentação de ativos entre diferentes blockchains, oferece aos criminosos meios adicionais para fragmentar, ofuscar e ocultar fluxos financeiros ilícitos.

Essas ferramentas dificultam a aplicação de métodos tradicionais de rastreamento, como o follow the money, e exigem novas capacidades analíticas por parte das autoridades. Soma-se a isso a fragmentação jurisdicional, uma vez que muitas exchanges operam a partir de países com baixa regulação e pouca ou nenhuma cooperação jurídica internacional, o que limita o acesso a registros financeiros e a efetividade de medidas cautelares, como o bloqueio de ativos.

Exemplos práticos dessas dificuldades podem ser encontrados em operações recentes da Polícia Federal brasileira.

Além da já mencionada Operação Kryptos, que identificou movimentações superiores a R$ 32 bilhões e resultou no bloqueio de cerca de R$ 3,2 bilhões em ativos sob custódia da 3ª Vara Criminal Federal do Rio de Janeiro, outras investigações de grande vulto, como a Operação Egypto e a Operação Colossus, também expuseram a vulnerabilidade dos mecanismos tradicionais de combate à lavagem de dinheiro frente à nova realidade dos criptoativos.

Na Operação Egypto, por exemplo, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) validou a apreensão e o bloqueio de criptoativos, reconhecendo formalmente sua natureza jurídica de bens passíveis de constrição em investigações por crimes contra o sistema financeiro nacional. Já a Operação Colossus, deflagrada em 2024, revelou um esquema de movimentação de mais de R$ 13 bilhões por meio de empresas de fachada e exchanges estrangeiras, evidenciando a crescente sofisticação das redes criminosas no uso de ativos digitais.

No plano internacional, a Financial Action Task Force (FATF), em sua guia atualizada de 2021 para uma abordagem baseada em risco sobre ativos virtuais e prestadores de serviços de ativos virtuais (VASPs), recomenda a adoção da chamada Travel Rule (diretriz criada pela FATF/GAFI que estabelece requisitos de compartilhamento de informações entre instituições financeiras e, mais recentemente, entre VASPs, com o objetivo de combater a lavagem de dinheiro e o financiamento ao terrorismo) e o licenciamento obrigatório de VASPs. As diretrizes exigem que esses provedores implementem procedimentos rigorosos de Know Your Customer (KYC), além de mecanismos efetivos de monitoramento e reporte de transações suspeitas. Essas medidas têm como objetivo reduzir o grau de pseudoanonimato nas transações com criptoativos, além de facilitar a cooperação jurídica internacional no combate à lavagem de dinheiro, ao financiamento ao terrorismo e a outros crimes financeiros transnacionais.

Dentro desse contexto, o Brasil vem avançando gradualmente na estruturação de sua governança sobre criptoativos, especialmente após a promulgação da Lei nº 14.478/2022 e a edição do Decreto nº 11.563/2023, que atribuiu ao Banco Central a responsabilidade pela supervisão dos Provedores de Serviços de Ativos Virtuais (VASPs).

Embora ainda não exista uma Unidade Nacional de Criptoanálise Forense formalmente instituída, o tema tem sido objeto de atenção crescente em iniciativas como a Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (ENCCLA), que já incluiu os criptoativos entre os focos de suas ações de prevenção e repressão à lavagem de dinheiro.

No campo da cooperação internacional, a Interpol tem estabelecido esforços globais e regionais no enfrentamento dos crimes com criptoativos — incluindo grupos de trabalho sobre darknet/cryptomoedas, diretrizes para laboratórios forenses digitais, webinars especializados e projetos de cooperação técnico-operacional via seu Centro de Inovação.

Além disso, o alinhamento às diretrizes internacionais da FATF/GAFI, especialmente no que diz respeito à implementação de requisitos de KYC, monitoramento de transações e adoção da Travel Rule, indica uma tendência de fortalecimento das capacidades institucionais brasileiras na prevenção e combate aos crimes financeiros envolvendo criptoativos.

À medida que o uso de criptomoedas se massifica e os delitos econômicos se sofisticam, torna-se imperativo que as autoridades de persecução penal estejam tecnicamente capacitadas para navegar nesse ecossistema. Mais do que um desafio tecnológico, trata-se de uma verdadeira mudança de paradigma na forma de investigar, rastrear e compreender fluxos financeiros no século XXI.

O fortalecimento das capacidades analíticas, a integração interinstitucional e a adoção de regulamentações mais alinhadas aos padrões internacionais serão fatores decisivos para preservar a eficácia do Estado no combate à criminalidade financeira. Paralelamente, a aproximação com iniciativas globais, como aquelas lideradas pela FATF e pela Interpol, deverá orientar os próximos passos do Brasil na construção de um arcabouço jurídico e operacional capaz de enfrentar os riscos emergentes sem sufocar a inovação tecnológica.

O equilíbrio entre segurança pública e liberdade econômica será, portanto, o grande desafio que marcará a próxima década no campo da investigação financeira criminal.

Fonte: A dinâmica das criptomoedas e os desafios da perícia financeira criminal

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